Postado Originalmente em Sobre Livros por Cláudio Diniz
Texto adaptado por Cláudio Diniz
“If only i was sure
That my head on the door was a dream.”
(The cure. Close to me. In: The head on the door. 1985.)
Olá leitor! No verão de 2013 a San Diego Comic-Con comemorou os 25 anos do lançamento de Sandman de Neil Gaiman. Na ocasião, o autor revelou as identidades “secretas” desse ilustre personagem. Para ele, Sam Keith, desenhista das primeiras edições, teria se inspirado em pessoas como Bono Vox, David Bowie e Robert Smith para recriar o Sandman. Com Gaiman, o antigo personagem da DC comics ganhou roupas novas. Harlan Ellison assinala, numa introdução à Estação das Brumas (Conrad. 2006.), a pertinência do personagem. Em comparação aos outros sandmans da DC, afirma Ellison, o de Neil Gaiman “deixou de ser apenas uma figura mítica, fabulosa e divertida para se tornar um símbolo da excelência num mundo em que a mediocridade é nossa prisão cotidiana.”
A propósito, na obra de Neil Gaiman, as referências pululam entre o pop rock, a literatura clássica, os contos de terror, a arte gótica e até numa raríssima garrafa de Chateau Lafitte compartilhada com Hob Gadling Difícil encontrar um leitor de quadrinhos que não tenha ouvido falar de Neil Gaiman. O trabalho sistemático em Sandman, de 1988 a 1996, rendeu-lhe muita experiência e, claro, uma grande quantidade de prêmios. Prova disso é o fato de que só o prêmio Will Eisner, uma espécie de Oscar dos quadrinhos, o autor ganhou treze vezes. Sandman (além de O cavaleiro das trevas, Watchmen e Mauss) ocupa a lista do The New York Times dos cem livros mais vendidos de todos os tempos.
The Sandman é nome de uma série de personagens do universo DC. Desnecessário mencionar que o personagem é uma referência aos seres mitológicos que existem em diversas culturas (Morfeus, João Pestana, Serápis, Kitsune etc.) como modeladores dos sonhos. O primeiro Sandman a surgir no universo DC foi um detetive milionário, Wesley Dodds, criado nos anos 30 por Gordon Fox e Bert Christman. Wesley Dodds foi membro honorário da importante Sociedade da Justiça da América, precursora da Liga da Justiça. Na década de 70, Joe Simon e Jack Kirby reviveram o Sandman na pele de um super-herói protetor das crianças contra os pesadelos do sono. No princípio dos anos 80, Sandman faria parte dos roteiros de Roy Thomas (Wonder Woman) e de Paul Levitz e Len Wein (Justice League). No fim dessa década ressurgiria na obra de Rick Veitch (Swamp Thing) e, finalmente, nas páginas de Neil Gaiman.
O Sandman de Neil Gaiman, como se viu, é uma sucessão de ressignificações. Nessas estórias foi recriado o protagonista e alguns personagens há muito esquecidos do universo DC. Neil Gaiman refere-se à “combinação terror, fantasia e super-heróis” como a principal força motriz das estórias de Sandman. Para o reino de Sandman seguem as almas de todos os que dormem. Sandman é antropofágico. Quer dizer, quem mais iria trazer à baila Caim e Abel, Eva e outros personagens secundários da DC? O último voo de Lúcifer pelo inferno, com Sandman por companhia, evoca as obras de Dante e Milton. Onde mais alguém como Samuel Clemens, vulgo Mark Twain, teria inventado Joshua Norton, primeiro e único a se declarar imperador dos EUA e continuar vivo?
A série de Neil Gaiman teve setenta e cinco edições, divididas em dez arcos principais. Os arcos podem ser vistos em separado, mas há um tênue fio a conduzir sua sequência. A maleabilidade do roteiro legitima a presença variada de desenhos. Daí a grande quantidade de desenhistas (Bill Sienkiewicz, Dave MaKean, Dick Giordano, Gorge Pratt, Matt Wagner, Milo Manara, Mike Dringenberg, Yoshitaka Amano etc.) nas estórias de Sonho dos Perpétuos. Sandman cria e personifica o sonho. Ele é o próprio sonhar. Cada Perpétuo (Destino, Morte, Sonho, Destruição, Desejo e Desespero), seres antropomórficos que existem desde a origem dos tempos, define a si mesmo e o seu oposto. Do mesmo modo com que Morte determina a vida, o rei Sonho define a realidade. O que significa que Sandman é o demiurgo do sonhar e, também, do despertar. Em termos metalinguísticos, Sandman caracteriza a presença do autor como modelador da própria estória.
Sandman é uma série dionisíaca no uso de recursos da tragédia clássica. Na narrativa de Gaiman, Morpheus apresenta-se como uma espécie de deus ex machina. Isto é, Sandman aparece como solução mirabolante para desatar os nós da trama. É um recurso utilizado na tragédia grega que oferece uma solução não-natural à estória. Como se vê, a narrativa pós-moderna de Neil Gaiman assenta-se em bases antigas. Já nos referimos à variedade de leituras de Neil Gaiman para compor o Sandman. As referências mais explícitas, sem dúvida, encontram-se nas mitologias grega, egípcia, nórdica, japonesa etc. As citações que abundam na narrativa de Sandman espelham a erudição do autor e indicam o caráter universal da obra. Seu único limite (até os Perpétuos possuem algum!) é o universo da DC comics. Ainda assim, ao engendrar uma nova estória, Neil Gaiman cria um novo universo. A ideia de universos paralelos nunca fez tanto sentido.
Pode-se dizer que Sandman é um personagem melancólico. Na solidão de monarca revela-se uma alma dolorida. Seu caráter é triste e deslocado. Sandman vive a constante sensação de não-estar e de não-pertencer a nenhum lugar e a nada. Isso implica na saudade de um tempo não-vivido e na identificação do seu ego com a representação daquilo que desapareceu. Sandman molda o sonhar, mas não o tempo. As cicatrizes da memória preenchem sua alma. Os equívocos do passado sempre o atormentam e a estória do mestre dos sonhos desenvolve-se em meios às lembranças de culpas e crimes passados. Incapaz de romper com o processo histórico, o rei dos sonhos acumula tristezas muito humanas para um ser perpétuo. Ele é a representação erudita de um mundo em plena decomposição. Os heróis se revelaram covardes e os inimigos estão à espreita. Nesse caso, Sandman representa o anti-herói que sobreviveu aos movimentos de contracultura. O típico “rapaz mais triste do mundo” dos anos 80.
[SPOILER]